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Armazém de textos em que alguns até poderão ter piada

domingo, junho 12, 2005

O Cómico na transmissão da História





O Ofício do docente da História
As aporias do ofício



Ser docente de História, hoje, é uma actividade extremamente arriscada. Vários são os riscos que correm os s’tôres deste saber. Vou tentar, neste pequeno trabalho, enumerar alguns deles, sabendo antecipadamente que apenas poderei mostrar uma peque na ponta de um imenso iceberg. Deliberadamente, vou deixar de fora todas as questões que são também inerentes a uma classe mais vasta, que são todos os professores, em especial os professores portugueses, coitados…

Antes de passar a enumerar os riscos do docente da História, gostaria de fazer uma declaração de princípios: de nada vale transmitir os conhecimentos do passado se, ao mesmo tempo não se transmitirem valores necessários ao presente. O professor de História deve ser, antes de tudo, um humanista, porque ao transmitir a História, está também a fazer História. Está a transmitir uma experiência pessoal, que irá enformar a experiência de outros, quiçá, futuros historiadores, coitadinhos…

Posto isto, passemos então aos riscos do docente da História:

1º - O risco da Frustração Profissional

Imaginemos um recém-licenciado em História. Acabou há pouco de de ler o Mediterrâneo no tempo de Filipe II, do Fernand Braudel e tem tudo fresco no seu espírito – Tempo Curto, Tempo Médio, Tempo Longo…. Ele, que vive no Cacém, foi colocado numa escola em Lisboa (isto é, claro, pura imaginação delirante), onde vai dar o 7º, 8º e 9º anos. Antes de iniciar as aulas teve uma reunião de grupo (agora são os departamentos). A delegada informou-o já de tudo aquilo que ele precisava de saber (que ele tinha já aprendido nas pedagógicas) – como fazer uma planificação, como utilizar uma grelha de resultados, quais as melhores taxionomias, como avaliar (30% para a participação, 30% para os valores, 40% para os conhecimentos), etc.

O jovem professor vai agora dar a sua primeira aula ao 7º Ano. Tema – o que é a História. Inventou exemplos, estruturou tudo; minuto a minuto, segundo a segundo, ele sabe o que vai dizer, o que vai fazer, o que quer que lhe digam!

- Tu, como te chamas?
- Bruno!
- Então Bruno, para ti, o que é a História?
- Sei lá!
- Então, não tens ao menos uma ideia?
- Bem, a julgar pela sua cara, deve ser uma coisa muito chata!

E assim se inicia, o jovem professor, na marcação de faltas de castigo e começa o seu caminho para a frustração profissional.

Volvidos 5 anos, vamos encontrar o mesmo professor, numa outra primeira aula do 7º Ano, com o mesmo tema:

- Tu, como te chamas?
- Tiago!
- Então Tiago, ficas já a saber que a História é… e se mandas alguma “boca” vais já para a rua! E isto serve para todos, ouviram bem?

2º - O risco da Frustração Profissional

Imaginemos agora, um outro professor, extremamente empenhado na valorização dos seus alunos. Sempre que possível punha o programa de lado e suscitava discussões, mais ou menos organizadas. Um certo dia, numa turma do 9º Ano, aproveitou o ter que falar na emancipação feminina, no posd 2ª Guerra Mundial e generalizou a discussão para a actualidade. Passado algum tempo, notou numa das suas alunas um ar angustiado. Perguntou-lhe o que se passava:
- O meu pai saiu de casa, porque a minha mãe declarou que agora também ele tinha que lavar a loiça.

3º - O risco da Frustração Profissional

E o que dizer daquele professor, que estando a fazer uma oral do 11º ano (no tempo do antigo Curso Complementar Nocturno), reparando no ar desesperado do aluno, tentou aligeirar o momento:

- Bem Pedro, para começar, vai-me dizer a morada e o número de telefone de todos os portugueses que morreram na Batalha de Alcácer-Quibir!
- Mas, mas… ó s’tôr, eu acho que nós não demos isso e, pelo menos, não vem no livro!


4º - O risco da Frustração Profissional

Esta cena passa-se agora numa escola extremamente bem equipada, com um Conselho Directivo (isto já foi há uns anos, agora seria Conselho Executivo) dinâmico, inovador, disposto a transformar a escola numa rampa de lançamento para o futuro (hoje seria aquilo que o Ministério chama de “Escola de Excelência”). A escola tinha um clube de rádio, um clube de informática, um clube de espeleologia, u clube de malacologia e um clube de arquitectura inteligente. Este professor de História é um vinculado. Está pela primeira vez nesta escola e vai dar, também pela primeira vez, aulas a uma turma da reforma (recordo que a história se passa há uns anos, na altura da reforma do Roberto Carneiro). Como foi colocado mais tarde, foi informar-se do tema da Área-Escola, pensando aliás que aquilo da interdisciplinaridade era uma boa ideia. Disseram-lhe que naquele ano o tema seria, precisamente, a informática, na perspectiva da interdisciplinaridade.
- Mas eu não sei nada de computadores! Qual vai ser a minha participação?
- Ó pá, nãp sei, mas vais ter que arranjar qualquer coisa que se adapte. És de História, desenrasca-te…


5º - O risco da Frustração profissional

Estamos agora na casa de um professor de História. Sentado a uma secretária o professor corrige uma “turma de pontos”, perdão, corrige uma “turma de testes sumativos”. Como é do conhecimento geral, estes testes corrigem-se pergunta a pergunta, perdão, questão a questão, pois só assim não haverá riscos de subjectividade na correcção.

O professor vai agora iniciar a 3ª questão do I Grupo, que era a seguinte: “Refira a problemática do final do reinado de D. Fernando e a sua ligação com a crise de 1383/85”. Resposta do primeiro aluno:
- “Bem, então foi assim, D. Fernando era casado com uma meretriz. E teve uma filha que era casada com o Conde Andeiro, rei de Espanha e que não se dava bem com o sogro. E este, às portas da morte disse que não o queria para rei de Portugal. E então apareceu D. João de Aviz, que tinha muitos filhos e que precisava de dinheiro para os manter, e que também queria ser rei. E este foi para Coimbra estudar para ser rei com um tal professor João das Regras.



Pelo acima exposto, temos já uma percepção da variedade de riscos que corre o docente da História. A lista é realmente interminável e por um certo decoro e brio profissionais (ainda existem, mas estão em perigo de extinção), prefiro ficar por aqui. Ademais, de aporias, angustias e dificuldades, também eu já tenho a minha conta.




Formas e Normas na Transmissão da História



Uma das formas de se evitarem alguns dos riscos que atrás foram enunciados, é através do um bom discurso do docente da História. E essa questão, mais do que a qualidade dos conhecimentos veiculados, devia preocupar o docente. Contudo este é humano. Todos os professores têm uma maior ou menor dificuldade de comunicação, e quase todos usam “truques” para as ultrapassar.

Professores há, que utilizam um linguagem extremamente simples, simplificando a História ao máximo, tornando-a num sistema de automatismos, transformando-a em definições – correm o risco daquele aluno que aprendia a ler: - Um pê e um á pa, um tê e um ó to – ma-rre-co!

Outros instalan-se numa torre de marfim e convencem os seus alunos que só alguns, os predestinados, poderão alguma vez almejar a perceber o alcance dos Ciclos de Kondratieff na História Económica do século XIX e a sua inscrição num complexo histórico-geográfico.

Uns e outros afastam-se do humano. A única forma de transmitir a História de uma maneira equilibrada, é não segui uma norma rígida. Ou seja, utilizar um discurso adaptável aos alunos, às suas condições intelectuais e sociais. É necesário conhecer o aluno e dar-se a conhecer ao aluno. O cómico é uma das soluções à disposição do docente. Talvez seja mesmo a solução mais inteligente, porque nunca se afastará do humano e implica sempre uma profunda, muitas vezes indulgente, empatia humana. Através do riso, os alunos descobrem na História um prazer, mesmo antes de a descobrirem como necessidade do próprio espírito.

Várias são as formas do professor utilizar o cómico na transmissão da História – a ironia, o humor, a caricatura… o que é necessário é que o aluno sinta a História como algo que lhe está próximo, que ele pode usar com prazer e que enforma a sua inteligência. Como diz BERGSON, “(…) numa sociedade de inteligências puras, talvez nunca mais se chore, mas cada vez havemos mais de rir (…)”[1].

Da comicidade da História podemos encontrar muitos exemplos. Vou citar dois, distantes no tempo, mas próximos nas intenções. Primeiro, Pinheiro CHAGAS, em 1880 “(…) Pois Sebastião José de Carvalho e Melo tratou Portugal exactamente como vocês tratariam a tal quintarola. Olhou para tudo e disse consigo: “Eh! Com os diabos, como isto está! No Paço há um bando de pardais que dá cabo da melhor fruta dos pomares da nação. Toca a enxotar os pardais”! E como os pardais refilaram, saltou ao tiro neles. As searas da inteligência, que também são trigo, porque dão o pão do espírito, não podiam medrar, porque as afogava por toda a parte o joio do jesuitismo. Toca a sachar os jesuítas (…)[2].

Outro exemplo, mais recente, pertence a Carlo CIPOLLA, ilustre historiador da Economia. Diz ele acerca da Europa do século XIII: “(…) A Europa Ocidental, de lugar tétrico e triste que era, transformou-se de repente numa terra transbordante de vitalidade, de energia e de optimismo. O aumento do consumo de pimenta, incrementou a exuberância dos homens que, com tantas lindas mulheres ao redor fechadas nos seus cintos de castidade, sentiram um grande e repentino interesse pela serralharia; muitos transformaram-se em serralheiros (…) e a metalurgia europeia entrou definitivamente em fase de arranque e de self-sustained growth (…)”[3].

A História é complexa e extremamente necessária à construção da nossa contemporaneidade. Mas essa contemporaneidade deve rimar com felicidade e só é feliz quem ri e quem sabe fazer rir. Cito mais uma vez BERGSON “(…) muitos definiram o Homem como “um animal que sabe rir”. Deviam também tê-lo definido como “o animal que sabe fazer rir” (…)”[4].

Nota: trabalho realizado para a Cadeira de Sistemas Valorativos e suas aplicações, do Curso de Mestrado em Cultura Arquitectónica, da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, em 1995. (com algumas adaptações)

[1] in Henri BERGSON, 1956, Le rire, Vendôme, PUF, p.3
[2] in M. Pinheiro CHAGAS, s.d., História Alegre de Portugal, Lisboa, Livraria Progresso Editora, p.120
[3] in Carlo M. CIPOLLA, 1993, Allegro ma non troppo, Oeiras, Celta Editora, p. 26
[4] in BERGSON, OP.CIT., P.3

5 Comments:

At 9:44 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Os alunos são um poço de surpresas. Ai são, são!

 
At 7:47 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Olá João C.
Há q tempos mandei-te 1 mail a q ñ respondeste - falta de tempo? outra razão? Bom, desde 98 q ñ nos encontramos pq acabou aquele 'lugar' na FA onde alguns se fizeram mestres.
Gosto deste teu bloco de notas onde vim parar pelas 1000imagens e voltarei se ñ te importares.
Percebi q tens uma data de blocos destes e vou procurá-los c + tempo.
Saudades
MJoãoE

Ah os riscos de ser professor e outras coisas mais na vida.. interessante

 
At 11:44 da tarde, Blogger João Castela Cravo said...

Maria João. Eu creio que na altura te respondi. Envia-me um mail, que eu entretanto perdi os meus contactos

 
At 3:49 da tarde, Blogger fernando said...

:))
grande João!!

 
At 4:33 da tarde, Blogger Maria Clarinda said...

João, agora aqui presa ler os teus blogs, é um modo de me ajudares a passar o tempo, adoro e aprendo imenso com tudo o que escreves, obrigada amigo. Jinhos mil

 

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